REALIDADE BRASILEIRA

Leis em favor dos criminosos do “colarinho branco” e julgamentos contra os mais frágeis

Leis em favor dos criminosos do “colarinho branco” e julgamentos contra os mais frágeis

No Brasil o crime compensa, desde que seja cometido por ricos. A nossa legislação venera os criminosos do colarinho branco. Quanto mais branco o colarinho, mais impune o sujeito fica. E o Poder Judiciário, infelizmente, muitas vezes faz-se de cego às ilegítimas discriminações veiculadas na legislação.

A autora relatou que contratou com a clínica onze sessões de laser “qswitched” para tratar pequenas manchas de sol no rosto. Já na primeira sessão, sentiu muito ardor e retornou à clinica para saber com o médico qual procedimento deveria tomar. Foi informada que o profissional estava em um congresso e não poderia atendê-la.

Imaginemos o cometimento de dois crimes bem parelhos, mas cometidos por personagens muito distintos.

Dirceu é branco, politicamente influente, dono de diversas empresas. Aprecia um bom vinho e um excelente charuto cubano.

Severino é negro, sem nenhuma influência política e não tem nenhum patrimônio. Aprecia uma cachaça vagabunda e traga um cigarro mal cheiroso.

Dirceu sonegou diversos impostos federais e apropriou-se indevidamente das contribuições sociais de seus inúmeros empregados. O valor do dano: R$ 200.000.000,00 (duzentos milhões de reais).

Severino entrou em um supermercado, depois de pular um muro, e furtou alguns bens e valores encontrados no caixa. Valor do dano: R$ 2.000,00 (dois mil reais).

Dirceu nunca se arrependeu do crime e nem sentiu medo de ser preso. Severino, por sua vez, ficou com muito medo. Ficou com tanto medo que foi até o supermercado e devolveu tudo, até o último centavo do que havia furtado. Enquanto Severino devolvia os bens que subtraiu, uma revista publicou o escândalo de sonegação fiscal e apropriação indébita previdenciária cometido por Dirceu. Severino foi levado à Delegacia de Polícia. Dirceu recebeu a solidariedade de diversos políticos.

O Ministério Público ofereceu denúncia criminal contra Dirceu e contra Severino.

Os inúmeros advogados de Dirceu foram à Fazenda Pública e aderiram ao REFIS II, instituído pela Lei 10684/03. A empresa de Dirceu se comprometeu a devolver os valores sonegados em 200 parcelas. Ainda conseguiu um desconto na dívida. Depois de efetuar o pagamento, a punibilidade foi extinta. O processo criminal ficou suspenso e Dirceu continuou levando uma boa vida, continuou rico e influente. Veja o que diz a Lei:

Art. 9o É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1oe 2o da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento.

§ 1o A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva.

§ 2o Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios.

O Severino não teve essa moleza toda não. Apesar de ter devolvido tudo antes mesmo de ser denunciado, não teve direito à extinção da punibilidade. Nem teve direito à suspensão do processo, porque respondia a uma crime da Lei Maria da Penha. Com muito custo conseguiu, por meio da Defensoria Pública, que reconhecessem o arrependimento posterior. Severino foi condenado. Deixou de ser primário e agora vai ficar mais difícil conseguir emprego. O arrependimento posterior só garantiu a redução da pena. Veja a Lei:

Art. 16 - Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços.

Parece mentira, mas temos um “arrependimento posterior” para os ricos sonegadores de impostos e um “arrependimento posterior” para os demais crimes patrimoniais, tais como furto, estelionato, apropriação indébita entre outros que, em geral, são cometidos por pessoas como o Severino.

A Constituição Federal prevê que todos são iguais perante a Lei. Acontece que Dirceu e Severino cometeram um crime patrimonial, sem violência contra a pessoa e reparam o dano. Então, porquê um teve direito à extinção da punibilidade e o outro apenas a uma redução da pena? Aonde está a igualdade?

O crime de Dirceu é muito mais grave, pois os impostos sonegados poderiam salvar a vida de muitas pessoas que esperam nas imensas filas dos sucateados hospitais públicos. Muitas crianças não podem exercer o direito à educação de qualidade por causa dos impostos sonegados. Mesmo assim, Dirceu foi beneficiado pela Lei.Não se pode dizer que a discriminação é razoável porque é interesse do Estado receber os valores sonegados. As vítimas particulares também querem receber de volta o que lhes foi subtraído.

A Lei criou um tratamento não isonômico para situações idênticas, beneficiando o autor da conduta que em geral é mais grave.

Os tribunais e juízes brasileiros, no entanto, deixam de interpretar a legislação de forma conglobante e aplicar o mesmo benefício dado aos que sonegam impostos para os que cometem crimes menores. Deixam, assim, de aplicar a verdadeira justiça.

Eventualmente, muito eventualmente mesmo, até se encontram decisões que harmonizam a legislação. As exceções, todavia, confirmam a regra. Uma das excepcionalidades pode ser vista na decisão que o Superior Tribunal de Justiça adotou no Recurso em Habeas Corpus 25091/MS. Veja o resumo da decisão:

Apropriação indébita (em razão da profissão). Advogado (verba trabalhista). Restituição do bem antes da denúncia (caso). Punibilidade do fato (extinção). 1. A ação penal proposta contra advogado que deixou de repassar a clientes quantia recebida em razão de ação trabalhista não há de ir adiante quando, antes mesmo do oferecimento da denúncia, ocorreu o ressarcimento dos valores. 2. Ora, se se pode considerar desnecessário o Direito Penal quando possível garantir a segurança e a paz jurídica por meio do Direito Civil, Administrativo ou por meio de medidas preventivas extrajurídicas, mais desnecessário será em caso de restituição do bem apropriado indevidamente. 3.Há, pois, de se responder, com a extinção da punibilidade do fato, à pergunta formulada em caso análogo: se o indivíduo que sonegou milhões de reais não responde pelo crime de sonegação caso pague o valor sonegado antes do recebimento da denúncia, por que não dispensar o mesmo tratamento a alguém que comete um delito contra o patrimônio, sem violência, na hipótese da vítima não sofrer prejuízo (por devolução ou restituição dos bens/valores)? 4. Recurso ordinário provido – extinção da ação penal. (RHC - RECURSO ORDINARIO EM HABEAS CORPUS – 25091 / HAROLDO RODRIGUES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/CE) / SEXTA TURMA / DJE DATA:17/05/2010). (Destacamos)

A decisão acima, conquanto isolada, é a que mais atende ao artigo 5o da Constituição Federal, que estabelece o princípio da igualdade de tratamento dos cidadãos perante a Lei. Quando do julgamento, o Ministro Nilson Naves destacou que se for “dado ao legislador ordinário fazer leis absolutamente discriminatórias, cai por terra o princípio da isonomia”. Aplicar a isonomia é dizer que Dirceu e Severino, ainda que pertencentes a extratos sociais diversos, são iguais, quando vivenciem a mesma situação. Mais, se alguma diferenciação puder ser feita é com o fim de reduzir as desigualdades sociais, não o contrário.

O mesmo Ministro Nilson Naves defendeu que a regra do arrependimento posterior prevista na Lei 10684 seja estendida aos demais crimes patrimoniais. Textualmente afirmou que:

Agregue-se, por fim, que a aplicação analógica do artigo 9o da Lei no 10.684 é exatamente a aplicação da principiologia constitucional ao caso concreto, proporcionando, desse modo, que se alcance, no caso sub judice , a resposta correta (the right answer ). A interpretação e reconstrução do direito (a integridade e a coerência de que fala Dworkin, imbricadas com a fenomenologia hermenêutica), em uma filtragem hermenêutico-constitucional, aponta para isso. O sistema jurídico não pode tratar desigualmente situações idênticas. Mais do que isto, o sistema não pode tratar com mais rigor o cidadão que emitiu cheques alheios ou que furtou do que o cidadão que sonegou tributo, delito de índole transindividual.

É preciso que as leis sejam interpretadas levando em consideração todo o ordenamento jurídico para que se possa ter uma interpretação mais científica. Não é razoável que a Lei trate o mais fraco de forma mais enérgica e o mais forte de forma branda. Não estender a extinção da punibilidade pelo arrependimento posterior aos demais crimes patrimoniais é uma incoerência legislativa e um ato de covardia judicial.

Fontes:

  • http://www.sabermelhor.com.br/index.php/680-lei-beneficia-criminosos-do-colarinho-branco.html
  • Foto meramente ilustrativa